sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Viagem a Lisboa

                Padre Zé inscreveu-se num curso de reciclagem teológica. A viagem até Lisboa era longa e resolveu ir de autocarro. Sempre era mais barato e podia ir mais tranquilo, até porque não conhecia muito bem as ruas da capital. As aulas eram ministradas apenas de manhã. À tarde, geralmente, aproveitava para conhecer os lugares que só via na televisão.

(entra e senta-se) Desculpe!
– Não tem importância.
(abre a mala, procura alguma coisa) Desculpe mais uma vez. Pode emprestar-me a revista do jornal?
(olhando-a fixamente) Claro!
(Perturbada) Obrigada.
– Vai para o Oriente…
– Sim. Como sabe?
– Tenho-a visto a sair lá.
(Admirada) A mim? Já me viu outras vezes?
– Todos os dias. Entra em Moscavide às 06h55 e vem até Alcântara. Depois regressa às 17h20 ou 17h40 e sai na Estação do Oriente, mas vai mais no das 17h20.
(Surpreendida) É verdade!
– Mas tenha calma. Não sou detective.
(tom de brincadeira) Por momentos até pensei!
– Peço desculpa pela ousadia. Não a queria perturbar. Embora… confesso… precisava dizer-lhe isto. Não me pergunte porquê! Não saberia responder-lhe…
– Espere! Estão-me a ligar… oh, parou… é só uma mensagem.
– Estamos em Entre-Campos, já não falta muito para si.
– Pois… talvez...
– Não saia!
– Desculpe?!?
– Desculpe você. Excedi-me! Não queria dizer isto!
– O comboio hoje está vazio… por que me olha assim?
– Não sei… sei… no outro dia… desculpe… não… não…
– Fale. Quero ouvir. Sinto que o conheço! Não percebo!
– Você é linda…
– Então?
– Não! Não! Não nos conhecemos, eu sei, mas é como se a conhecesse há muito. Vejo-a todos os dias…
– Pelos vistos, já me conhece todos os passos…
– Linda… tão linda… nunca vi mulher igual!
– Você está a deixar-me sem jeito.
– Vamos. Vamos sair na próxima estação, os dois?
– Sim! Não… não… não pode ser! Não o conheço.
– (Exaltado) Oriente! Saímos?
– Não! Na próxima!
– Estranho. O comboio parou. Saiu toda a gente…
– Espere… não saia.

(...)

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Na cidade

A intelectualidade surgia em cada novo membro que se alistava na Irmandade. Toda a nata burguesa se deflagrava ali como uns verdadeiros filhos da puta que dominavam tudo e todos. A Comunicação Social andava atrás deles como sanguessugas, tentando obter a melhor foto para a capa e extorquir-lhes a frase mais sonante para manchete.
                Era sábado de manhã, o tempo estava meio escuro, as donas de casa corriam nas lides domésticas depois de uma semana de trabalho. Conde e Justiniano dirigem-se ao Club no centro da cidade. Haviam combinado um encontro com o Presidente da Câmara para engendrar a melhor maneira de contratar o recém-licenciado. O Club era coisa da elite. Só entrava lá quem fosse sócio. Ninguém iria desconfiar. Pelo menos os comunistas que estavam por todo o lado.
                Comunistas eram todos os que não se enquadravam no regime. (…)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A festa da aldeia

(Um encontro planeado num monte junto ao cemitério)
– Desculpa!
– Estava com medo! Não me parecias tu.
– A esta hora não é normal aparecer ninguém. E, para mais, os mortos não se levantam.
– Pára com essas coisas. Não brinques com isso, sabes que não gosto.
– Não gostas, mas não queres ir para outro lugar.
– Sabes bem a razão.
 – Sei mesmo?
 – Para com isso, vamos para ali…
 – Não. Hoje vai ser diferente. Quero foder dentro do cemitério.
 – (irritada) Tás parvo! Nem penses!
 – Ok. Estava a brincar contigo. Queria ver a tua reacção. Anda, vamos ali para trás…
 – Espera. Pára. Vem alguém…
 – Também ouço vozes…
 – Anda. Vamos para trás daquela capela.
                (deslocam-se)
 – Cuidado. Chega-te para trás…
 – Quero ver quem é!
 – (agarrando-a) Deixa lá…
 – Tira a mão. Aqui não!
 – (Apalpando-a) Sim! Vai ser mesmo aqui…
 – (Admirada) Pára. Olha… consegues ver?
 – O quê?
 – Estão parados junto ao poste… bem que já desconfiava.
 – Conheces? Consegues ver… foda-se! Foda-se!
 – Pois…
 – Filho-da-puta!
 – Aquela cabra… tão santinha…
 – Ai o cabrão…
 – Deixa… já vão embora. Vamos sair daqui…
 – (Beija-lhe o pescoço) Agora não. Aqui estamos mais seguros…
 – Tu deixas-me louca…
 – Qualquer dia somos nós… apanhados…
 – (Tirando-lhe a roupa com pressa) Deixa isso agora…
 – Abre…
 – Vai com calma… no início…
 – Tás toda molhada…
 – Vai… faz… faz…
 – Vou-me vir rápido!
– Eu já me vim… faz-me vir mais…
– nunca te vi assim…
– Estou-me…
 – Eu também…
 – (suspirando intensamente) Que bom!
 – Espectacular!

 – Cala-te! Ouço vozes…

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A tempestade

Justiniano levanta-se assustado com o estrondo ensurdecedor que se fez sentir. A chuva, o vento e a continuada trovoada precipitam os tremores na Joaninha, a filha da criada mais antiga da casa, levando-a a correr de um lado para o outro como um pássaro atordoado à procura de abrigo. A sala fica de repente iluminada e Justiniano tenta acalmar Joaninha com as suas palavras sábias na arte do conhecimento das precipitações da natureza. A sua passagem pelo curso de Literaturas Clássicas em Coimbra tornava a sua eloquência uma lei inquestionável.
No outro lado da casa, bem longe do centro de todas as atenções, a mãe de Joaninha dava-se ao desfrute com o Pároco da aldeia, relação que já se prolongava há anos, mas, a todo o custo, o plano que engendraram, em colocar D. Prazeres como uma senhora extremamente escrupulosa, continuava a ser muito esclarecedor e ninguém ousava questionar as visitas do Pároco repetidas vezes por semana à Casa Grande, mesmo que essas visitas se dessem durante a noite.

O Pároco tinha assumido, secretamente, com D. Prazeres a educação de Joaninha e preparava um pé-de-meia para que ela fosse estudar para Coimbra onde tinha frequentado o ensino superior o recém-licenciado Justiniano. O Senhor Conde, grande amigo do Abade, conhecia toda a estratégia e prometera ser cúmplice desta situação, disponibilizando-se em dar o seu nome como benfeitor nas despesas e até alguma ajuda se necessário fosse. 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A cumplicidade

(...)
Era Domingo - dominus dei - e a população dirigia-se para assistir a mais uma eucaristia do Pe. Zé. 

- Leitura do Evangelho de S. Mateus (4, 1-11)
"Tentação: Jesus defende o autêntico ideal messiânico - Então, o Espírito conduziu Jesus ao deserto a fim de ser tentado pelo demónio. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome. O tentador aproximou-se e disse-lhe: «Se Tu és Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertem em pão». Respondeu-lhe Jesus: «Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus». Conduziu-O, então, o Demónio à cidade santa, e, colocando-O  sobre o pináculo do Templo, disse-lhe: «Se tu és o Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo, pois está escrito: Dará a Teu respeito ordens aos anjos; eles suster-Te-ão nas suas mãos para que os Teus pés não se firam nalguma pedra». Disse-lhe Jesus: «Também está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus!». Em seguida, o Demónio conduziu-o a um monte muito alto e, mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória, disse-lhe: «Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares». Respondeu-lhe, então, Jesus: «Vai-te, Satanás, pois está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto».
    Então o Diabo deixou-O e chegaram os anjos e serviram-n' O.»

Palavra da Salvação.

A homilia seguia pelo caminho que o Pe. Zé mais gostava, agradar ao Espírito, ao seu Espírito e ao seu corpo, pois se as ovelhas fossem bem encaminhadas, os senhores da terra não esqueciam a hora do ofertório e atiravam com força a esmola semanal, para que se ouvisse o poder da sua força e domínio sobre todas as coisas.

Se estes senhores soubessem quem lhes andava a comer as filhas mandavam capar o padre, assim, até lhes agradeciam as marendolas e os passeios no seu bolinhas, como diziam os putos dos escuteiros. Era um Fiat 127, que já fora visto muitas vezes na Penha com os chefes dos escuteiros que tinham muitas reuniões... Isso dizia o Pe. Zé aos pais delas, mas depois que o chefe Abílio bateu com a língua nos dentes aos caminheiros, os rapazes marcaram um raid nocturno mesmo junto ao Pio IX para vigiar o padre, pois de quinze em quinze dias as reuniões eram ao Sábado e ninguém trabalhava.